Caso alguém prefira ler um texto menos agressivo sobre este assunto, já escrevi este aqui.
Peço desculpas se algo aqui não está bem explicado. Eu não estou em um estado mental bom para elaborar tudo da melhor forma.
Palavras × "ativismo real"
Eu estou cansade de gente argumentando que as palavras usadas não importam, e sim a intenção ou outras coisas que elas fazem.
Sim, existem casos onde empresas usam vocabulário certo para surpreender comunidades marginalizadas e conseguir elogios e fama positiva pelo lucro. Ou mesmo casos onde indivíduos conseguem disseminar retórica opressiva disfarçada de progressiva por supostamente usarem os termos corretos. Estas coisas devem ser criticadas, porém, usar as "palavras corretas" deveria ser uma demonstração mínima de respeito pelas comunidades afetadas, e acho absurdo ver gente argumentando que chamar a atenção para algo tão básico de alguma forma tira o foco de "ativismo real".
Se tais "ativistas reais" quisessem que pessoas como eu parem de falar sobre palavras, deveriam então considerar o que estamos falando e aplicar no dia-a-dia, para que possamos gastar menos esforço com isto e mais esforço com outras formas de combater o sistema e apoiar pessoas que sofrem por conta dele. Mesmo que discordem, poderia ser uma tática pra conseguir solidariedade com mais grupos. Eu garanto que alguém vá deixar de dar apoio a um grupo/projeto/partido/etc. porque as pessoas estão parando de diagnosticar oponentes como neurodivergentes e usando termos mais diretos para descrever tais oponentes, por exemplo.
Da mesma forma, se "ativistas reais" pensam que refletir sobre o vocabulário e deixar parte dele de lado é tão fútil, poderiam não gastar seu tempo fazendo postagens e outros materiais que se dedicam a defender o seu direito de usar certas palavras.
Enfim.
Palavras fazem parte da interação de várias pessoas com o mundo
No dia-a-dia, minha maior interação com outres é através de palavras. Eu não estou vendo se alguém está numa conversa privada ensinando algo a quem não teve oportunidade, ou se alguém está comprando uma casa pra começar um projeto que oferece comida de graça, ou se alguém acabou de doar metade do salário para uma ocupação. Porém, eu estou ouvindo ou vendo as palavras que as pessoas estão usando em linhas do tempo que sigo, ou grupos de conversa onde estou, ou que estão sendo direcionadas para mim pessoalmente.
Se eu vejo uma pessoa aleatória falando algo como "homens e mulheres precisam se unir pra derrotar esse sistema autista que é o capitalismo", eu não tenho como ver essa pessoa como minha camarada contra o sistema, ou como alguém que pode ter feito ou estar trabalhando em trocentas "boas ações". Eu estou vendo uma pessoa exorsexista (por não acreditar em pessoas não-binárias ou nos considerar irrelevantes) e capacitista (por ver autismo como uma descrição de algo ruim) que provavelmente gostaria de ver pessoas como eu sendo exterminadas (pra manter essas visões de mundo, já que estamos em 2020 e dificilmente alguém anticapitalista na internet nunca soube que pessoas autistas ou não-binárias existem, portanto, a exclusão deve ser proposital).
As palavras que alguém usa muitas vezes também são indicadoras dos ambientes que essa pessoa está. Alguém falando de "SJWs" negativamente é provavelmente antifeminista, e, se não for, acha que um ou mais ativismos específicos "foram longe demais". Isso geralmente me afeta como pessoa neurodivergente e queer em vários aspectos que usa neolinguagem, mas também afeta várias outras pessoas por serem consideradas de marginalizações vistas como irrelevantes.
É possível que essas pessoas usando as "palavras erradas" genuinamente não saibam o que há de errado com isso e acham que signifiquem outras coisas, mas vale a pena se expor a um possível confronto que pode se desenrolar para algo pior (perseguição, várias pessoas sendo chamadas pra fazer chacota ou encherem de perguntas de má fé, infâmia espalhada pelas redes sociais quando reaças maiores descobrem sobre o caso) porque a pessoa poderia só precisar que alguém chamasse a atenção, ainda que fosse uma pessoa desconhecida com uma visão contrária fazendo isso, ao invés de ser alguém fazendo isso propositalmente?
Palavras afetam saúde mental
Como alguém que já foi diretamente afetade não apenas por xingamentos capacitistas ou queermísicos, mas também por rótulos de funcionamento e linguagem reducionista, entre outros tipos de termos nocivos sendo usados contra mim, tem vezes que alguém criticando a própria "inteligência" ou elogiando algum texto com aspectos reducionistas me faz com que eu me sinta horrível, repense se as pessoas em volta sequer estão lendo o que eu escrevo, ou, se não estão, é porque só querem me manter em volta como token e na verdade mal podem esperar pra que eu pare de criticar o que eu critico, ou por "entrar no sistema" ou por morrer.
(E, quando eu morrer, podem falar sobre o quanto amavam e acompanhavam o meu conteúdo, mesmo enquanto usam algum pronome errado pra mim e me descrevem como alguém sem gênero específico e no guarda-chuva bi. Na semana seguinte, poderão finalmente falar o quanto era desconfortável ver tantas identidades diferentes sendo apoiadas no Orientando.)
Aliás. Eu ainda sinto desconforto e medo quando tenho uma consulta com ume profissional que supostamente aceita minha identidade não-binária (algo bom), mas que mesmo fazendo tal "ação antiexorsexista" de me atender insiste que eu não tenho gênero porque os únicos gêneros são homem e mulher. Ou quando vejo a popularidade de um texto que, mesmo sendo supostamente antiexorsexista por normalizar um "gênero neutro" na língua, contém uma introdução que afirma que qualquer neopronome diferente de elu não é pronunciável, e que portanto todos os pronomes que uso (eld, elz, éli, elx) são todos inacessíveis e inutilizáveis. Essas coisas ainda me invalidam, e invalidam um monte de gente como eu, ainda que possam "fazer o bem maior". Por que as palavras e retóricas não podem também ser consideradas importantes, e só podemos ter ou ações benéficas ou palavras benéficas?
Mas isso não é só sobre mim. Umas histórias em quadrinhos curtas de anos atrás (que agora não sei como achar) demonstravam pessoas dissociando e ficando subitamente desconfortáveis ao ouvirem palavras estigmatizadas sendo usadas casualmente em situações sociais. O uso de insultos baseados em comparações com grupos marginalizados também demonstra um afastamento ou uma vontade de se afastar de tais grupos, o que causa problemas para as pessoas desses grupos (os links são exemplos disso acontecendo dentro de capacitismo, mas não tenho motivos pra acreditar que isso não pode acontecer com o uso de termos misóginos, racistas, queermísicos ou afins).
Isso, por sua vez, também afeta ações: como posso seguir em frente com o meu dia se meu cérebro fica remoendo essas situações? Como poderia indicar um grupo de ativismo a alguém sendo que a pessoa seria exposta a microagressões do tipo?
A normalização de vocabulário inapropriado
Posso dividir vocabulário opressivo nestas categorias:
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Palavras que descrevem um grupo marginalizado diretamente, mas de forma propositalmente ofensiva ou que é majoritariamente vista como ofensiva atualmente por haverem termos mais apropriados para o grupo (a maioria das "palavras estigmatizadas clássicas" estaria aqui);
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Palavras que são usadas para descrever grupos de forma neutra/positiva, mas que são opressivas dentro de um contexto onde são vistas como algo negativo (exemplos: "isso é tão gay", "você é surde?");
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Palavras que estão sendo usadas para descrever grupos com qualquer conotação, mas usadas de forma que remete à desumanização ou invalidação dos grupos ou a apagamento de outros grupos, por serem usadas nos contextos errados ou da forma errada (exemplos: "LGBT" ao invés de qualquer alternativa mais inclusiva ou o uso de o/ele/o como linguagem neutra);
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Palavras que colocam um grupo privilegiado como superior, sendo que isso faz com que a conclusão lógica seja que os grupos marginalizados no mesmo eixo não tenham tal qualidade (por exemplo: o uso de "alma branca" pra significar que alguém tem bom coração ou é pacífique: isso significa que pessoas com almas não-brancas são ruins e/ou violentas?);
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Palavras que colocam um grupo marginalizado como ruim, mas que não são palavras que estão sendo usadas para descrever um grupo, apenas para comparar/associar algo ruim com o grupo (por exemplo: "idiotice");
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Conceitos, ambientações e apitos de cachorro que não falam nada diretamente sobre grupos privilegiados ou marginalizados, mas que, ao analisar quais os significados do que está sendo falado, é difícil não ver como isso não se trata de perpetuar sistemas opressivos (exemplos: inteligência, que sempre dependeu de conceitos eurocêntricos, xenomísicos, capacitistas, racistas e misóginos; ódio ao funk, que pode parecer uma questão de gosto mas que geralmente se trata de colocar pessoas periféricas e negras como alvos; Pepe, que pode parecer só um meme qualquer mas que atualmente é associado com a extrema direita).
(Palavras podem machucar sem serem necessariamente vocabulário opressivo: abusos verbais, difamações, discursos de ódio e afins não são necessariamente vocabulário opressivo da mesma forma do assunto desse texto, embora também sejam ações que podem perpetuar opressão.)
Sempre vão ter pessoas usando vocabulário opressivo que não sabem que ele é opressivo. Mas sempre vão ter pessoas se sentindo atacadas mesmo que quem esteja usando tal vocabulário não saiba que ele está sendo nocivo. Especialmente porque isso acaba sendo mais fácil de perceber quando a pessoa é do grupo afetado.
Mas tanto pessoas que usam o vocabulário sem querer quanto as que usam de propósito acabam normalizando um sistema opressivo e excludente.
Repetir que pessoas ou situações ruins são delirantes, esquizofrênicas, fóbicas, narcisistas, gordas, indígenas, macumbeiras, femininas e afins normaliza que pessoas/comunidades com essas características precisam ser curadas ou devem ser desvalorizadas. Repetir que pessoas, situações ou coisas boas ou neutras são brancas, masculinas, enxergam bem, ouvem bem, possuem empatia† (mas só em determinadas situações), são capazes de amor romântico† e afins normaliza que é isso que é ser uma pessoa boa, normal e merecedora de humanidade/respeito/comunidade.
† A intenção aqui não é dizer que estas pessoas possuem sempre privilégio em relação a esta questão, mas várias vezes há retórica que coloca essas coisas como prioridade.
Por favor, façam isso parar
Peço a todes que, ao entender isso, tentem refletir sobre como seu vocabulário pode estar excluindo alguém, ou comparando uma comunidade marginalizada a algo ruim sem que seja esta a intenção.
Uma forma de combater vocabulário opressivo é não usar tal vocabulário: quanto menos pessoas usam, menos alguém vai sentir a necessidade de usar tais palavras para descrever algo, ou descrever coisas/situações/seres de formas inapropriadas.
Mas acho que a maioria das pessoas precisa ser mais ativa do que isso.
Quem administra fóruns pode colocar filtros em certas palavras, fazendo com que postagens que usem tais palavras mudem automaticamente para alguma outra coisa. Isso pode ser útil para evitar o uso de certas palavras, mas há termos que nem sempre vão estar sendo usados em contextos opressivos.
Filtros também podem ser usados, com a mesma ressalva, em redes sociais como Mastodon. Isso pode ajudar a evitar compartilhar algo que usa certas palavras por acidente.
Calling in é fundamental. Pessoas que não querem contribuir com sistemas opressivos provavelmente vão apreciar quem tiver energia pra falar sobre isso ao invés de apenas bloquear.
Falar sobre isso abertamente também é importante (com os avisos de conteúdo adequados). Aqui tem uns links pra artigos que falam de palavras e expressões estigmatizadas/opressivas. Aqui tem outro texto bem completo sobre linguagem capacitista.
Coisas compartilhadas devem, se possível, ser acompanhadas de avisos de conteúdo para linguagem misógina, capacitista, queermísica, racista ou o que for. Isso ajuda não só quem quiser evitar isso, mas também ajuda a sinalizar que quem está compartilhando não concorda com isso.
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