Observações
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Aviso de conteúdo: Queermisia contra diversos grupos. Eu vou tentar não mencionar exemplos muito pesados, mas isso pode ser meio difícil.
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A maioria dos termos deste texto que podem não ser tão reconhecíveis estão com links que levam para suas definições.
Definição
Uma microcomunidade, ao menos em contextos queer/LGBTQIAPN+/NHINCQ+, pode ser definida como qualquer comunidade dentro da comunidade queer/LGBTQIAPN+/NHINCQ+ que não tenha visibilidade, respeito e peso dentro de uma comunidade mais geral que em teoria devesse incluir essas comunidades menores.
Microcomunidades muitas vezes são alvos de chacota dentro destas comunidades mais gerais, mas mesmo que não sejam, podem também estar sendo invisibilizadas ou desconsideradas de outras formas.
Microcomunidade é um termo que diz respeito apenas a pessoas que deveriam estar sendo contempladas por caber na definição da comunidade geral (ou de quem ela inclui ou deveria incluir) por si só.
Isso significa, que, por exemplo, se homens trans binários não estão se sentindo incluídos em um grupo sáfico, esses homens não podem dizer que são uma microcomunidade ali, porque o grupo não é para homens binários, trans ou não. Porém, se homens trans binários não estiverem sendo levados em consideração em comunidades que se dizem trans ou LGBTQIAPN+, talvez homens trans binários possam ser uma microcomunidade nesse contexto.
Mais sobre o uso deste termo será detalhado mais tarde.
Motivo e origem
Contexto: questões intracomunidade
Infelizmente, alguns grupos em comunidades NHINCQ+ só querem beneficiar a si mesmos, ou a si mesmos e a grupos considerados mais consagrados.
Algumas vezes, é uma questão de receio de ter que aprender coisas novas e de ter que refletir sobre certas retóricas não serem inclusivas.
(Exemplo: a inclusão de pessoas trans, intersexo e a-espectrais, entre outras, questiona a ideia de que “amor é amor” é um bom slogan para pedir igualdade para o tratamento da população NHINCQ+ em relação ao resto da sociedade. Daí, algumas pessoas preferem dizer que essas comunidades não importam ou não fazem parte da comunidade em geral, ao invés de mudar esse slogan para algo mais inclusivo e/ou de admitir que ele não é inclusivo.)
Outras vezes, é uma questão de manter certo poder, de almejar estar na classe dominante ao invés de manter solidariedade com quem está fora do sistema.
(Exemplo: algumas pessoas trans binárias mantém a ideia de que são assim como pessoas cis e hétero, só que com corpos diferentes. Assim, essas pessoas tentam ao máximo se encaixar nos estereótipos e nos corpos que as normas de gênero e que a hetero/cisnormatividade colocam como padrões, e aceitam ser maltratadas em troca de mais apoio do sistema.
Daí essas pessoas tentam manter seu suposto privilégio rejeitando o ativismo de pessoas trans que lutam para ser reconhecidas como tão válidas quanto pessoas cis independentemente de transição e de história de vida, ridicularizando pessoas trans que não preenchem estereótipos de gênero e difamando comunidades não-binárias o máximo possível. Algumas também expressam opiniões completamente heterossexistas e diadistas.)
E também pode ser uma questão de ser intolerante contra certo grupo mesmo; ou seja, de acreditar nas mentiras que sistemas opressivos usam para falar que gente de certos grupos não prestam, e de usá-las diretamente em seus argumentos, ou modificá-las para que fiquem com uma “cara de militância” antes disso.
(Exemplo: a ideia de que pessoas múlti não são confiáveis e podem sempre trair com alguém de outro gênero por serem promíscuas demais é algo que algumas pessoas que sofrem sob heterossexismo expressam contra pessoas múlti, mas é uma ideia heterossexista perpetuada contra não só pessoas multi, mas também contra pessoas que fogem do padrão hétero em geral.
A ideia de que uma mulher pan tem “risco de ir para o outro lado” pode ser usada como “justificativa” tanto por um namorado controlador que quer isolar sua parceira pan de suas amizades por ciúmes quanto por uma pessoa influente em uma organização “LGBT” tentando impedir uma mulher pan de conseguir um cargo importante nela. O namorado vai dizer que tem medo dela trair porque sente falta de mulheres, e a pessoa influente vai dizer que tem medo dela encontrar um homem hétero e “sair da militância”, mas as duas atitudes têm base na mesma coisa e demonstram desconfiança em cima de uma mulher múlti.)
Contexto: “microrrótulo” e palavras similares
Nestes últimos anos (principalmente 2014 pra frente), houve tanto a cunhagem de várias palavras novas para descrever identidades, opressões e conceitos relacionados quanto uma onda reacionária contra estas palavras e as comunidades que as usam, tanto de pessoas NHINCQ+ quanto de pessoas de fora da comunidade.
Um dos termos depreciativos que foram cunhados principalmente para pessoas “LGBT” invalidarem outras identidades NHINCQ+ foi microlabel (microrrótulo). Outros termos utilizados da mesma maneira foram equivalentes da língua inglesa de neorrótulo, neoidentidade e microidentidade.
E, eventualmente, algumas pessoas atingidas por estes rótulos passaram a usá-los de maneira neutra ou positiva.
Em geral, eu não tenho problema com a ressignificação de rótulos. Tudo bem você pegar algo que usam pra te xingar e dizer “tá, sou isso mesmo, e daí?”
Só que, para mim, esses rótulos são… vazios. Eles só significam “identidades que eu não gosto e que portanto não considero parte da comunidade”. Então me incomoda que estes termos estejam sendo utilizados como se fossem um conjunto de identidades coerente.
O prefixo “micro” faz referência a algo pequeno. O que seria um rótulo pequeno, uma identidade pequena?
Seria uma identidade usada por poucas pessoas? Porque a identidade assexual é muitas vezes considerada parte deste grupo, mas milhares de pessoas se identificam com ela, por mais que existam poucos espaços onde pessoas possam se descobrir e assim passar a se identificar como assexuais.
Seria uma identidade específica demais? Então como é que identidades como mulhessexual (atração sexual exclusiva por mulheres) são consideradas específicas demais, enquanto identidades como lésbica (atração de mulheres e de pessoas que se consideram de identidade parecida apenas por mulheres e pessoas que se consideram de identidade parecida) não são?
O prefixo “neo” faz referência a algo novo. Isso até pode fazer sentido para várias identidades, mas o rótulo não-binárie só passou a ser usado como “não ser completamente/somente/sempre homem nem completamente/somente/sempre mulher” por volta de 2010; antes disso, essas pessoas se encaixavam no guarda-chuva genderqueer ou utilizavam identidades específicas como neutrois e bigênero.
Então como é que não-binárie seria um termo ok, enquanto termos anteriores (como demissexual, que é de 2006, e arromântique, que tem evidência de que já existia em 2006) são “neoidentidades”?
Não estou dizendo que toda cunhagem precisa seguir de forma literal as raízes da palavra, e sim que não existe nada que realmente une essas identidades além de “são as identidades que algumas pessoas se esforçam para questionar a presença na comunidade em um dado momento”.
Só que isso nunca é dito, então o que conta ou não conta como microrrótulo/neoidentidade/etc. me parece muito no ar. Então eu preferia ter uma palavra diferente; uma já cunhada para que as comunidades afetadas consigam usar em qualquer contexto, ao invés de uma controlada por quem está discriminando e que geralmente está partindo de um contexto específico.
Microcomunidade é uma palavra baseada em microrrótulo e microidentidade, mas vou explicar melhor aonde ela difere depois.
Contexto: outros termos usados para significar coisas parecidas
Gênero de bolso foi um termo criado anos antes de neorrótulo e afins para contemplar identidades de gênero utilizadas por uma ou por poucas pessoas.
Porém, é um termo que nunca foi muito usado, e que acho que não parece muito intuitivo.
MOGAI é uma sigla cunhada há anos para contemplar pessoas não-cis, não-hétero e intersexo, basicamente. Ela é usada como sinônimo de microrrótulo e afins (“essa gente MOGAI” = “essa gente que usa microrrótulos”, basicamente). Porém, era pra ser uma alternativa mais inclusiva a LGBT(QIAPN+), então não acho legal contribuir para essa deturpação. Pessoas trans binárias, bi, gays e lésbicas estão sim inclusas em MOGAI, por definição.
Gêneros não-binários não-reconhecidos tem sua origem aqui, e obviamente só contempla identidades não-binárias.
Mais notas sobre a utilização de microcomunidade
Micro, mas comunidades
Microcomunidade sempre dá a ideia de que existe a possibilidade de uma comunidade, mesmo que só uma pessoa faça parte dela no momento. A ideia aqui é que quando se fala de microcomunidades, estamos falando de pessoas, e não apenas de definições.
Eu quero que isso chame atenção quando pessoas falam de “neoidentidades” como se fossem teorias abstratas: não são. Se você está tirando sarro das identidades urânica e netúnica, você está tirando sarro de pessoas não-hétero que usam esses termos para se descreverem. Se você está falando de como a identidade abro é inútil, quero que esteja bem explícito que você está chamando uma comunidade de pessoas não-hétero de inútil.
O uso do termo varia em relação às circunstâncias
Eu quero que pessoas possam usar microcomunidade em contextos como:
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Existe um grupo “LGBT” com muitas pessoas. Porém, mais da metade é de homens cis gays sem experiência nenhuma em lidar com pessoas NHINCQ+ de outras identidades. Eles também controlam a direção em geral, então podem decidir facilmente que não vão se dar o trabalho de fazer qualquer coisa para datas importantes das comunidades lésbica, trans, bi, assexual, arromântica, intersexo, não-binária, etc. Também fazem piadas misóginas, cissexistas, alossexistas, etc. o tempo todo. Pode-se dizer então que todas as comunidades que não são a de homens gays são microcomunidades, neste contexto.
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Existe um fórum para pessoas trans. Apesar de ter uma pessoa não-binária na moderação, retórica diadista e exorsexista é frequente. Pessoas não-binárias são supostamente bem vindas pelas regras, mas sugestões de opções de gênero fora homem, mulher e outro são ignoradas, a moderação não se importa com a maldenominação de pessoas que usam conjuntos com neolinguagem e nem com piadas por cima de quem usa e/elu/e ao invés de o/ele/o como linguagem neutra. Neste caso, pessoas trans não são uma microcomunidade, e pessoas não-binárias são.
Porém, na internet em geral, acredito que o uso mais geral seja em casos como:
- Uma pessoa omnissexual e poligênero decide abrir um servidor de chat para pessoas de microcomunidades NHINCQ+. A ideia é que pessoas possam falar das particularidades de suas identidades ali, mesmo que se sintam silenciadas em espaços NHINCQ+ gerais, e mesmo que não sintam que suas identidades estejam sendo acolhidas ou contempladas em grupos especificamente bi, assexuais, lésbicos, gays, pan, não-binários ou trans que acharam por aí. Neste caso, uma pessoa ômni pode não ter se sentido contemplada em espaços bi ou pan, e uma pessoa caligossexual pode não ter se sentido bem em um espaço assexual, mesmo que pessoas bi, pan e assexuais sejam muitas vezes colocadas de lado em comunidades maiores.
Isso pode criar uma contradição: se pessoas de comunidades consideradas microcomunidades em outros lugares se unem em um lugar e têm poder (dentro daquele grupo), já não são mais microcomunidades.
Porém, eu prefiro dizer que isso cria uma solidariedade entre pessoas que são consideradas de microcomunidades em várias situações diferentes.
Talvez um homem trans nunca tenha se sentido excluído de uma comunidade de homens trans, mas tenha sido silenciado e ignorado muitas vezes em comunidades com mais identidades envolvidas. Daí talvez ele queira estar numa comunidade para microcomunidades para desabafar e aprender sobre outras comunidades excluídas. Ou talvez ele não sinta necessidade disso, já que já se sente aceito em outras comunidades.
Eu não sou a favor de levantar portões contra pessoas com rótulos “comuns demais”. Dependendo das circunstâncias, essas pessoas podem passar pelos mesmos problemas. Mas cada comunidade pode ter suas regras, de qualquer forma.
Intersecções
Talvez quem esteja lendo tenha percebido que tentei evitar o assunto. Talvez não.
Mas e aí, comunidades de pessoas trans neurodivergentes podem ser microcomunidades dentro de comunidades trans majoritariamente neurotípicas? Comunidades de lésbicas negras podem ser microcomunidades dentro de comunidades lésbicas majoritariamente não-negras?
Eu sinceramente não sei responder.
Por um lado, o termo microcomunidade surgiu de contexto e palavras que só são usades para identidades NHINCQ+.
Por outro, vejo como esse termo pode ser útil para outras comunidades silenciadas, até porque cabem na definição. Pessoas trans que são {identidade} sempre vai estar implicitamente dentro de pessoas trans.
E também existem vezes que essas intersecções possuem termos próprios. Como é que lésbicas podem ser uma microcomunidade em um grupo gay, mas mulheres múlti não podem ser uma microcomunidade em um grupo múlti? Como é que pessoas ultergênero podem ser uma microcomunidade em um grupo trans, mas pessoas intersexo e trans que não usam ultergênero não podem ser uma microcomunidade?
Mas voltando ao lado anterior, só por lésbica e ultergênero serem termos diferentes de mulher gay e de pessoa trans intersexo, isso já contribui para que o grupo maior as exclua. Eu não sei no caso de lésbicas, mas qualquer termo “novo” (como ultergênero) já traz mais desdém na cara de pessoas que não querem ser inclusivas do que a descrição do próprio termo.
Então eu acho que fica meio que a critério de cada pessoa, e meio a critério de como o termo vai sendo usado por aí. Só não levantem os portões à toa.
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