Eu geralmente não ataco preferências pessoais ao invés de exaltar ideias melhores, especialmente em questões relacionadas com neolinguagem porque não existem padrões perfeitos, mas isso está chegando em um ponto que está afetando muito algumas pessoas.
Como esse modelo vai ser criticado de qualquer forma, que ao menos pessoas que o usem saibam dos porquês.
1. O modelo parece ter tido a intenção de ser uma adaptação "fácil" de conjuntos usados na anglosfera, sem pensar nas particularidades da língua portuguesa, então não é nada completo.
Na língua inglesa, um conjunto completo possui pronome do sujeito, pronome do objeto, adjetivo possessivo, pronome possessivo e pronome reflexivo. Então they/them/their/theirs/themself, he/him/his/his/himself e ze/hir/hir/hirs/hirself seriam exemplos de conjuntos completos.
Ponto importante: Estes cinco elementos são basicamente tudo o que muda no tratamento de alguém na língua inglesa, com a exceção de nomes e títulos. Ou seja, she/her/her/hers/herself é um conjunto bem mais completo do que a tradução direta ela/dela/sua/ela mesma.
2. O modelo não consegue atingir o mesmo objetivo que o modelo anglófono no qual ele foi baseado.
Como cinco elementos é muita coisa e vários dos pronomes possuem conjuntos óbvios, é comum reduzir conjuntos a dois ou três destes elementos. Como they/them, he/him/his ou ze/hir/hirself, por exemplo.
Ainda é esperado que pessoas com conjuntos de pronomes mais fora do comum (ou seja, praticamente qualquer conjunto que envolva neopronomes, como fae/faer, xe/xem, ze/hir, voi/void ou kit/kits) tenham em algum lugar esse conjunto completo disponível. Também é possível pesquisar; tem a possibilidade de dois conjuntos serem parecidos mas não iguais, mas boa parte é distinta entre si. Jogar fae faer pronouns num buscador dá em várias páginas como esta, que ensinam a usar o conjunto completo.
De qualquer forma, mesmo sem a possibilidade da pesquisa, a normalização de disponibilizar dois ou três elementos do conjunto facilita a vida de pessoas que usam neopronomes. A partir do momento que alguém sabe o que é she/her ou he/him, a pessoa também vai saber que algo como ae/aer ou ne/nim funcionará de forma similar, ao menos para estas partes do conjunto.
Ponto importante: Algo como ela/dela ou ele/dele não ajuda em nada quem usa pronomes como elz ou ily. Dificilmente alguém que usa elz não vai usar delz, e alguém que usa ily não vai usar dily.
A informação escolhida para a segunda parte do conjunto, ao contrário da intenção original, não dá nenhuma informação extra sobre a linguagem pessoal de alguém.
Poderia haver uma exceção, no caso de pronomes que começam com consoantes. Por exemplo, se alguém usasse le como pronome, poderia dizer que usa le/del ou le/dile ou alguma outra coisa.
Mesmo assim, todas as pessoas que conheci que usam pronomes que começam com consoantes, ou que são compostos por emojis, possuem ao menos um pronome alternativo que pode ser usado para propósitos de falar que algo é daquela pessoa.
3. Delu, dela, dele, déli, dile, etc. são apenas contrações da palavra de com um pronome.
Não existem adjetivos possessivos na língua portuguesa, e nossos pronomes possessivos são seu, minha, etc. Dela é uma contração entre de e ela. Dele é uma contração entre de e ele. Isso também vai valer para qualquer neopronome.
A não ser que alguém queira usar uma contração entre de e [pronome] que seja diferente do pronome em si (o que é bem raro, se existir), a presença desta contração no conjunto é supérflua.
A tradução de pronomes reflexivos (himself → ele mesmo, herself → ela mesma) ao menos daria a informação de um final de palavra, e a presença de pronomes demonstrativos (como em ele/esse ou ela/essa) e/ou possessivos (como em ela/sua, elu/mi ou ele/meu/seu) também poderia ajudar a entender mais da linguagem pessoal de quem usa pronomes como elu e eld, mas esse não é o caso do que escolheram para a segunda parte do conjunto.
4. Na língua portuguesa, existem elementos demais que mudam entre "gêneros gramaticais" para ocupar um elemento de conjunto com algo supérfluo.
(Este também é um motivo para parar de chamar conjuntos de linguagem de "pronomes".)
Vou dar um exemplo em inglês de uma frase usando she/her e depois ey/em. Depois, vou mostrar as mudanças que ocorrem quando a frase é traduzida para a língua portuguesa, usando o modelo [pronome]/d[pronome], considerando o pronome éli como uma tradução aceitável para ey/em.
- This is Taylor, the new teacher. She uses she/her pronouns.
- This is Taylor, the new teacher. Ey uses ey/em pronouns.
- Esta é Taylor, a nova professora. Ela usa o conjunto ela/dela.
- Estie é Taylor, i nove professore. Éli usa o conjunto éli/déli.
Nas frases em inglês, só os pronomes mudam. Nas frases em português, não adianta só traduzir o pronome (ey/em → éli). Eu também tive que escolher:
- Um pronome demonstrativo (escolhi estie, uma possibilidade para quem usa final de palavra e);
- Um artigo (escolhi i, um artigo que é usado por algumas das pessoas que usam pronome éli);
- Um final de palavra (escolhi e, o final de palavra mais comum entre pessoas que usam neolinguagem em seus conjuntos de linguagem).
Não só estas escolhas são separadas do pronome (existem pessoas que usam -/éli/e, i/éli/i, entre outras possibilidades, e quanto ao pronome demonstrativo, também poderia ser esti, ésti, estu, este...), como também não são nada óbvias se as pessoas só dão uma informação.
5. Tais modelos incentivam a criação de uma coerência única para cada neopronome.
Até onde eu sei, fui eu que cunhei o pronome eld. Nunca vi ninguém usá-lo ou falar dele antes de mim.
Na época que cunhei, eu ainda achava o final de palavra e estranho demais para usar por aí. Meu primeiro final de palavra era ' (essencialmente, você corta o fim da palavra; usando palavras como moç' e não-binari' ao invés de moce e não-binárie).
Eu também gostava do artigo ed, que é parecido com eld mas que também é um artigo de duas letras que não pode ser confundido com outras palavras.
Porém, com o tempo, eu preferi demonstrar nitidamente que meu final de palavra é e, e muita gente confundia ed com um nome, então meio que não quis usar mais. Mas ainda gosto bastante do pronome eld.
Porém, se a lógica fosse que só o pronome deveria ser mostrado num conjunto, e que o resto teria que seguir uma narrativa única combinando com tal pronome, eu teria que abandonar meu pronome só por não ter mais tanto apego a outros elementos do meu conjunto.
Mesmo sem pensar na linguagem que eu uso, várias outras pessoas usam conjuntos com os mesmos pronomes onde o resto é diferente.
-/elu/e; ê/elu/e; le/elu/e; e/elu/e; u/elu/u. Eu entendo a necessidade de um padrão como uma proposta de linguagem neutra universal. Mas, para conjuntos de linguagem pessoal, por que há a necessidade de negar algo que é mais confortável para alguém em nome de um padrão, ao invés destes conjuntos diferentes poderem ser expressados?
Pronomes tendem a ser mais fixos na língua inglesa por seguirem algum tema ou alguma letra. Isso pode acontecer com alguns conjuntos na língua portuguesa, como ae/elae/ae ou a/ela/a, mas se já temos o/ele/o, e e como um final de palavra popular mas que muita gente não quer usar como artigo, faz mais sentido termos um sistema mais flexível para expressar nossas linguagens pessoais.
Não temos linguagem separada das associadas com gêneros binários embutida na língua portuguesa. Isso significa que qualquer alternativa vai ser vista como estranha para a sociedade em geral, e até mesmo para outras pessoas que desejam um conjunto fora da norma. É por isso que é muito importante incluir e celebrar pessoas com os mais diversos conjuntos de linguagem; é muito difícil achar uma linguagem com a qual nos sentimos confortáveis, então precisamos de métodos efetivos para que possamos escolher e expressar nossos conjuntos.
Para me preparar para a inevitabilidade de pessoas ainda quererem usar pronome/d[pronome] (ou passarem então a só revelarem o pronome), gostaria de argumentar contra os seguintes pontos:
1. Não gostar do sistema artigo/pronome/final de palavra, ou de sua versão mais completa
Ok. Faça o seu, talvez? Tipo, se você usar elu/mi/essu/e, il[a]/esta (com [a] identificando final de palavra) ou éli/sui/i, já vai ser bem mais informação útil do que elu/delu, ila/dila ou éli/déli.
Eu não gosto tanto das pessoas simplesmente ignorando o artigo quando isso é alvo de tanta discussão sobre linguagem neutra universal, mas algo como ile/e ou ele/o ao menos demonstra o final de palavra, e artigo é algo relativamente fácil de omitir.
Se o seu problema é que pra usar artigo/pronome/final de palavra você precisa expor algum elemento de conjunto sendo que você não sabe ainda o que quer usar, talvez use - (que significa que é pra evitar usar aquele elemento), ou [qlq] (que significa que você está aceitando qualquer coisa para aquele elemento)?
2. "Usar [pronome]/d[pronome] é mais fácil. :("
Uhhhh... você não está mostrando sua linguagem ou para que as pessoas saibam como te chamar, ou para normalizar que pessoas cuja linguagem não é "óbvia" possam ter menos receio de demonstrarem como devem ser chamadas?
Se você usa um neopronome (com as possíveis exceções de el@ e de elx), ou se você quer usar um conjunto que envolve neolinguagem e que usa ele ou ela, você está sendo prejudicade por pessoas que normalizam demonstrar a linguagem usando só um pronome (ou usando um pronome e palavras que essencialmente contém tal pronome).
Se você usa elu, élu, êlu, ilu ou ílu, e vai interagir com pessoas sem experiência com neolinguagem, a pessoa não vai saber que seu final de palavra será provavelmente e, e não u.
Se você normaliza que todas as pessoas que usam neopronomes usam final de palavra e, isso prejudica pessoas que usam outros finais de palavra junto a neopronomes, como quem usa a/ila/a, -/ély/y, i/éli/i, ae/elae/ae, o/elo/o, li/el/z ou fy/yl/y (e, sim, todos estes são conjuntos que pessoas usam).
Obviamente é mais confortável só pensar em um elemento do conjunto e não pensar nada no resto, mas o sistema artigo/pronome/final de palavra não é tão difícil assim, e normalizá-lo ajuda bastante pessoas com conjuntos mais divergentes dos padrões.
Ajudar tais pessoas a ter sua linguagem respeitada, fazendo de certos espaços mais seguros para elas, não deveria ser uma prioridade maior do que o conforto de quem pode escrever sua linguagem como quiser e todo mundo vai entender?
3. Quanto à possibilidade de alguém realmente usar ila/dela, ilo/delu, ele/dile, etc.
Se alguém diz que usa um conjunto assim, eu sinceramente não sei se a pessoa só está confortável com ila e dela sem estar confortável com ela e dila, ou se a pessoa só queria misturar os dois pronomes que gosta em um formato conhecido.
Eu posso oferecer duas opções:
- Usar a versão mais completa do conjunto artigo/pronome/final de palavra, onde a pessoa pode especificar que usa, por exemplo, a/uma/de/ila/dela/minha/essa/a;
- Usar algum outro conjunto e especificar que a contração é diferente. Por exemplo, a pessoa pode dizer que usa -/ele/e, mas que é pra usar dile ao invés de dele.
Dá até pra tirar uns elementos de um conjunto mais completo, mas se alguém disser que usa -/ilo/delu/o, é realmente difícil de saber se a intenção é usar -/(ilo, elu)/o ou se a contração entre de e o pronome é pra ser diferente do pronome. Infelizmente, a quantidade de gente que usa [pronome]/d[pronome] só por conveniência sem pensar no que quer expressar é grande demais.
Eu e outras pessoas já tentamos falar sobre isso várias vezes. Eu até cheguei a fazer algumas postagens para incentivar pessoas a adotarem o modelo artigo/pronome/final de palavra: uma só para explicar como isso funciona (com uma imagem que dá pra compartilhar pra ensinar outras pessoas a usar), uma com diversos exemplos de conjuntos também com imagens para compartilhar, e uma explicando a origem desse modelo.
Isso sem contar, bem, o monte de outros recursos que fiz para que pessoas entendam isso melhor. E que outras pessoas fizeram. Mas não estou aqui para fazer uma lista de links sobre isso.
De qualquer forma, não deixa de ser um tapa na cara o quanto esses esforços são ignorados em troca de um modelo tão ruim, mal pensado e que incentiva a perda de uma diversidade em troca de padrões que nem são aceitos o suficiente para que sua adoção valha a pena.
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