Aviso de conteúdo: Eu não vou dizer disso da forma que geralmente digo, mas o que tem aqui não deixa de ser reducionismo e discriminação contra identidades NHINCQ+ menos conhecidas. Também falo bastante sobre linguagem obsoleta e experiências no Tumblr.
Ah é, e os links no texto são para explicar a terminologia utilizada, para ajudar pessoas que não sabem tanto sobre vocabulário NHINCQ+.
Quando eu tinha uns, sei lá, 13 ou 14 anos, estava na moda usar trans* como um termo inclusivo de pessoas trans. A justificativa, na época, era que trans cobria pessoas transgênero, transexuais, bigênero, agênero, sem gênero, genderqueer, gênero-fluido e afins (a palavra não-binárie ou não era popular ou não existia na época).
Hoje em dia, considera-se que estas pessoas, e outras pessoas não-cis, ou se consideram trans sem precisar de um asterisco, ou não querem ser inclusas em um asterisco e sim em outra palavra. Mas era comum achar isso o ápice da inclusão até o meio desta década.
Enfim, o ponto não é esse. O ponto é que, eu nunca tinha visto aquelas palavras antes, ainda que tivesse uma vaga noção do que eram homens e mulheres trans.
Eu não lembro se a postagem que mostrou estes termos tinha termos traduzidos ou não. De qualquer forma, lembro que tentei pesquisar por cada termo, e minhas buscas não me trouxeram quase nada de útil.
Porém, eu consegui achar definições para alguns dos termos. A única que me lembro o que achei sobre é bigênero, e a identidade estava definida como algo do tipo "alguém que acorda alguns dias se sentindo homem e em outros se sentindo mulher, e que pode usar roupas diferentes para sinalizar isso". Acho que a definição tinha alguns parágrafos, mas basicamente reduzia alguém bigênero a alguém gênero-navalha homem/mulher, como se a pessoa não pudesse ter dois gêneros ao mesmo tempo, ou ter gêneros que não fossem binários.
Não lembro se cheguei a descobrir sobre pessoas completamente fora do binário naquele dia. Porém, vale pensar que esse conhecimento só foi absorvido por mim como curiosidade, e não como realidade.
Eu não cheguei a pensar nos tipos de desrespeito que uma pessoa que fosse mulher em certos dias e homem em outros pudesse passar. Ou na possibilidade de pessoas ao meu redor quererem tratamento diferente a cada dia.
Eu também soube por esta época que a linguagem inclusiva tinha trocado de @/el@/@ para x/elx/x, para incluir pessoas que não são homens ou mulheres. Mas nunca cheguei a pensar: que linguagem estas pessoas usariam normalmente, então? E se vejo todas as pessoas como homem ou como mulher e atribuo o/ele/o ou a/ela/a, respectivamente, como eu poderia respeitar pessoas cuja linguagem e/ou cujo gênero não é binário?
Se você não entende o que é x/elx/x ou o/ele/o ou afins, clique aqui.
Eu entendo que só saber de coisas assim não vai necessariamente mudar a vida de qualquer pessoa. Mas eu já tinha informações suficientes para pensar em como eu era/poderia estar sendo cissexista, e que talvez eu devesse ir atrás de informações sobre como não ser assim.
Eu me descobri assexual quando tinha uns 16 ou 17 anos. Foi numa daquelas postagens de Tumblr com esta imagem (estou colocando este link porque também explica alguns dos problemas com a imagem, mas assim como o uso do termo trans*, isso não é importante no momento).
Quando eu vi tal imagem, pela primeira vez me senti representade em alguma identidade. Já que eu não conseguia ver as poucas instâncias de atração romântica que tive na adolescência como reais, por conta da falta de atração sexual, a única forma que eu conseguia me entender era como alguém que não sentia atração por ninguém. E a ideia que tentavam tanto empurrar na escola de que eu sentia atração exclusivamente pelo gênero o qual achavam que eu era por eu não ser ou demonstrar ser hétero simplesmente não fazia sentido pra mim.
Eu tinha uma orientação sexual agora. Depois, meu entendimento das minhas atrações mudaria bastante, mas, com as informações que eu tinha, assexual era um rótulo completamente preciso.
Mesmo assim, no máximo eu achava que era uma pena que eu não tinha ninguém para falar sobre isso de forma presencial, ou que eu não tivesse tido esta informação em momentos que eu precisava ter me afirmado como alguma coisa para que não inventassem mentiras sobre mim.
Eu não tinha pensado em como, mesmo sabendo da existência da sigla LGBT, ela era obviamente limitada, visto que o gráfico que passei contém várias orientações que não estão em tal sigla.
Eu não tinha pensado em pesquisar espaços LGBT na minha área, já que eu havia sofrido bullying heterossexista e não era hétero.
Eu não tinha pensado nem em perguntar para pessoas heterodissidentes que eu conhecia se sabiam de algum espaço assim.
Novamente, eu entendo que nem todo mundo que passa por essas coisas vai querer "ligar pra isso", buscando uma comunidade ou lutando para que a próxima geração não tenha que lidar com desconhecimento, confusão e discriminação.
Mas a possibilidade nem passou pela minha cabeça naquela época.
Alguns anos depois, eu fui usar o Tumblr para interagir com um lado mais feminista da fandom de My Little Pony, porque o fórum que eu frequentava estava cada vez mais hostil a essas ideias.
Como fiz uma conta nova, quis ir atrás de blogs feministas para seguir também. E, com isso, também tive mais contato com questões LGBTQIAP+ (esta é realmente a sigla que boa parte usava na época!), o que também me incentivou a pesquisar mais sobre o assunto. Acabei seguindo uns blogs assexuais também; eu me identificava somente como demissexual, mas sabia que esta identidade era parte do espectro assexual.
Grande parte das feministas que eu seguia eram bissexuais, o que me fez aprender bastante sobre monossexismo, exclusão multi e afins. Também aprendi bastante sobre pessoas trans e um pouco sobre pessoas não-binárias; como deu pra ver, o meu envolvimento com essas questões tinha sido extremamente superficial até o momento.
Eventualmente, me deparei com o blog pride-flags-for-us, que, na época (ele foi deletado e refeito eventualmente), era um paraíso da inclusão. Esse tipo de blog tinha que ter padrões para ser levado a sério, então ideias suspeitas demais, capacitistas ou cissexistas eram recusadas. O blog também não publicava bandeiras de grupos de fora da comunidade, então era apenas uma coleção imensa de identidades marginalizadas, onde a maioria não tinha nenhuma visibilidade.
Minha reação inicial ao ver o blog não foi de nojo ou de insegurança, mas também não foi de felicidade ou de pertencimento.
Eu achava legal que pessoas não estavam se limitando às poucas identidades mais conhecidas, mas ao mesmo tempo... aquilo parecia ser um recurso para pessoas que estavam questionando, não para mim. Eu estava segure em relação à minha orientação sexual, pensava que minha orientação romântica seria ou hétero ou bi, e, mesmo que considerasse a possibilidade de talvez não ser cis devido às infinitas formas de não pertencer ao binário de gênero, estava relativamente confortável em minha cisgeneridade.
Fechei o blog, sem o seguir ou divulgar.
Eu poderia ter pensado no quanto estas identidades eram esculachadas e invisibilizadas, e em como eu poderia ajudar a combater isso.
Eu poderia ter pensado no quanto estas informações potencialmente importantes não estavam nem acessíveis a quem não sabia inglês.
Eu poderia ter pensado no quanto precisávamos divulgar mais identidades a-espectrais além de demi e gris, no quanto pode ser difícil entender o próprio gênero sendo que é difícil achar informações sobre identidades não-binárias que não sejam relacionadas ao binário de gênero, à neutralidade ou à ausência de gênero, ou no quanto a maioria das pessoas ainda não conhece nenhuma ou quase nenhuma orientação que inclua pessoas não-binárias de forma explícita (como viramórique, trixen ou cetero/medisso, embora a maioria destes citados nem existisse na época).
Mas eu simplesmente não percebi a maior parte destes problemas, além de não ver aquilo como problema meu. Eu via discriminação como um problema que eu não queria ajudar a perpetuar, mas eu também não quis ter um papel ativo em combater tal discriminação.
Quando meu blog de My Little Pony começou a ter gente seguindo e interagindo, eu criei um hábito de checar os blogs dessas pessoas.
Era comum que as pessoas não-binárias com rótulos mais "obscuros" (os quais geralmente eram neurogêneros ou xenogêneros) tivessem entre 13 e 17 anos. O que fazia sentido pra mim, que já sabia de noções básicas de discriminação contra pessoas não-binárias e contra rótulos "diferentes", e assim concluí que estas pessoas esconderiam ou sua não-binaridade ou ao menos seus rótulos mais específicos quando tivessem uma necessidade maior de serem respeitadas.
(Este é obviamente um pensamento bem pessimista e desrespeitoso. Assim como ser gay ou bi não deveria ser algo visto como uma fase ou como uma coisa a ser escondida, ser gênero-estrela ou autigênero também deveria ser aceitável em qualquer idade.)
Enfim, uma vez eu notei uma pessoa nova me seguindo, e vi que a pessoa era xungênero e verangênero. Imaginei que fosse outre adolescente. Mas vi mais sobre o perfil da pessoa, e descobri que ela era mais velha que eu.
Novamente, não é legal que esta tenha sido minha reação, mas isso me chocou. Isso abria novas possibilidades para mim, porque não só mostrava que eu poderia usar rótulos pouco reconhecidos sem ser um sinal de infantilidade, como também confirmava que o combate a discriminação contra identidades incomuns é algo que vale para qualquer idade, não só para adolescentes que estão se descobrindo e que depois vão se contentar com rótulos mais discretos.
Alguns meses depois, minha namorada se abriu como trans. Ela passou um bom tempo não tendo muita certeza de sua identidade de gênero, e foi a partir daí que eu comecei a ter que pesquisar sobre quais são os rótulos existentes que poderiam servir, para ajudá-la.
Depois disso, comecei a questionar minha própria identidade de gênero, e novamente tive que fazer mais pesquisas.
Eventualmente, percebi que deveria estar trazendo estas informações para outras pessoas, para que pudessem pesquisar ou entender sem eu ter que explicar ou traduzir sozinhe todas as vezes.
E foi daí que vieram publicações, sites, comunidades, blogs, contas e outras coisas que fiz e faço até hoje.
Decidi me abrir sobre isso por dois motivos. Um deles é eu ter pensado sobre o quanto esses artigos de jornais/revistas virtuais mal pensados sobre ser não-binárie, variorientade, assexual, etc. (que me recuso a passar links) realmente afetam a percepção das pessoas sobre esses grupos.
É sempre bom ter informações adequadas para referenciar, e é sempre ruim ter informações que estereotipam ou excluem pessoas dos grupos que pertencem.
Porém, será mesmo que há uma grande quantidade de pessoas que vai ver essas coisas como causas novas para lutar, possibilidades de ser ou possibilidades de outras pessoas serem?
Ou será que vai acontecer que nem aconteceu comigo, de ignorar praticamente todas as informações que não se aplicavam a mim ou a pessoas que eu conhecia?
Esses artigos geralmente não falam de discriminação como algo que pode ser passivo, e também não induzem pessoas a incluir a possibilidade de mais vivências em seu dia-a-dia. Geralmente só colocam essas identidades como curiosidades raras que a maioria das pessoas não precisa se preocupar com as ramificações.
Podem ser um ponto de entrada para quem se identifica com aquilo, ou algo a ser vagamente lembrado para quem faz questão de odiar a maior quantidade de grupos possível. Mas não são o fim do mundo, afinal, quem quer saber sobre mais informações vai pesquisar até achar fontes melhores. E a maioria nem vai querer saber sobre mais informações, só vai ignorar e esquecer o assunto.
A outra coisa que pensei é no quanto a maioria das pessoas não espalha o conteúdo que eu faço, ou que outras pessoas fazem sobre assuntos similares.
Será que é porque, para pessoas que passivamente leem o que escrevo, pessoas não-binárias, xenogênero, variorientadas, do espectro assexual, do espectro arromântico, etc., são só curiosidades que não afetam suas vidas a não ser que queiram interagir comigo ou com uma ou outra pessoa?
É por isso que as pessoas ignoram o quanto usar artigo/pronome/final de palavra é importante? Ou que a palavra exorsexismo é mais adequada do que binarismo de gênero para falar da discriminação contra pessoas que não se encaixam no binário homem x mulher? Ou que orientação é uma palavra mais inclusiva do que sexualidade ou orientação sexual? Ou que não é nada legal ser maldenominade porque a maioria pensa que pode atribuir gênero e linguagem com base na aparência?
É por isso que sempre me elogiam muito pelo quanto eu fiz de conteúdo para a comunidade e pelo quanto ensinei a elus, enquanto a maioria das postagens daqui só recebe compartilhamentos (raros) das mesmas pessoas? Enquanto eu não vejo mais praticamente ninguém tentando trazer termos que ainda não possuem traduções em português, ou tentando fazer conteúdo NHINCQ+ que seja original e inclusivo? Enquanto esta caixa de perguntas, que deveria ser um recurso útil e interativo, praticamente não é usada?
Não acho que ninguém tem a obrigação de se dedicar constantemente a uma causa, seja a sua, seja alheia. Eu diria que a única obrigação é se informar a ponto de não discriminar e de evitar contribuir com opressões.
O que trago aqui é uma reflexão sobre minha própria inatividade no passado, com a esperança de que alguém que só esteja precisando de um empurrão para fazer algo passe a fazer.
Se você quer isto, aqui está uma sugestão de por onde começar: Uma postagem rápida sobre conteúdo que seria bom ter na comunidade NHINCQ+
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