Então, para quem não sabe, artigo/pronome/final de palavra foi uma invenção minha.
Mas não foi só uma ideia que eu tive um dia, e sim algo que passou por um processo de planejamento.
Contexto inicial
Em 2015, quando me descobri não-binárie, as comunidades anglófonas que eu frequentava já tinham as seguintes noções:
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Conjuntos de pronomes não são óbvios pela aparência ou pelo gênero, e precisam ser sempre perguntados/pesquisados no perfil.
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Conjuntos de pronomes não devem ser classificados como femininos, masculinos, de homem, de mulher, etc. Afinal, pessoas de qualquer identidade de gênero podem usar qualquer conjunto de pronome por qualquer motivo.
Portanto, usar "pronomes femininos" como eufemismo para she/her ou "pronomes de homem" como eufemismo para "he/him" é cissexista e reforça normas de gênero, além de ser algo desnecessário. Apenas diga logo seus pronomes.
- Neopronomes são válidos.
Sim, existe they/them, mas muita gente não gosta da conotação de geralmente ser um pronome usado no plural, ou da conotação de ser um pronome usado por qualquer pessoa cuja identidade é desconhecida. Existe gente usando sie/hir, e/em ou outros pronomes há décadas, e não é porque they/them no singular virou mais popular que agora todo mundo tem que abandonar outros pronomes.
- Qualquer neopronome é válido.
Tem pessoas que não querem só escolher um conjunto de neopronome já conhecido e bastante utilizado. É mais importante que a pessoa tenha pronomes que pareçam confortáveis e/ou que sejam adequados para sua identidade do que serem pronomes "aceitáveis" ou "conhecidos".
A maioria das pessoas nem respeita they/them ou neopronomes comuns, então pra quê se forçar a se adequar a estes, ao invés de usar algo que gosta mais?
- Conjuntos auxiliares existem.
Se a pessoa usa pronomes considerados difíceis de decorar, é recomendável ter um conjunto auxiliar usado para quem não sabe usar bem o(s) principal(is), sendo que tal conjunto auxiliar também precisa ser confortável para a pessoa.
(Exemplo: alguém pode preferir fei/fire/fires/fires/fireself, ainda que não se importe com they/them/their/theirs/themself; daí a pessoa diz que este primeiro conjunto é o que quer que usem, e que they/them é o auxiliar para quem não consegue usar fei/fire.)
O que eu tirei disso
Eu usei e ainda uso they/them, e mais tarde também adotei ey/em, em contextos anglófonos.
Em 2015, eu ainda não tinha me aberto como NB para a maior parte das pessoas à minha volta, então nem tinha considerado tanto que pronome eu usaria em contextos lusófonos. Mas os princípios acima sempre fizeram sentido pra mim, e não achei que eles seriam considerados novidades ou complexos demais.
O pronome
Eventualmente, comecei a procurar por neopronomes em português.
No início, achei alguns meio suspeitos, como el@, elx e elæ. (Pesquise por português nesta página. Esta suposta lista está em quase toda fonte de língua inglesa que lista "pronomes neutros em outras línguas".)
Daí lembro de ter encontrado uma página que nunca mais vi, que sugeria êla, éle, ilu, ili, e mais alguns, talvez elu e ile.
Na época, eu não sabia do guia para linguagem neutra da Wiki Identidades, e nem havia visto pessoas usando o pronome elu.
Mas foi por essa época que também li em algum lugar que a letra x em palavras como elx, delx e lindx não é pronunciado.
Enfim, haviam alguns problemas com estes pronomes que eu tinha achado:
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Tanto o final u quanto o final e em pronomes como elu e ile me remetiam demais a algo "masculino". Não é a minha intenção aqui dizer que estes são "pronomes masculinos", ou de acusar pessoas que usam estes pronomes ou que os usam como neutros de serem mascunormativas, mas isso é algo que me deixa com gosto amargo demais na língua para me sentir confortável usando um desses como um pronome para mim.
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Pronomes como êla, éle, elæ e el@ pra mim são muito "mistura dos pronomes aceitos", e não era isso que eu estava procurando.
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A maioria destes pronomes estava sendo apresentado como propostas de pronomes neutros. Eu não queria um pronome neutro, usado para qualquer pessoa quando não se sabe o pronome que deveria ser usado para ela. Eu queria um pronome que fosse explicitamente algo que só uma pessoa não-binária ou muito fora dos padrões de gênero iria querer usar.
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Eu queria um pronome relativamente parecido com ele e com ela, para eu poder dizer "eu uso [pronome]" da mesma forma que outras pessoas dizem "eu uso ele" ou "eu uso ela". Eu achava que "eu uso ili" poderia ser bem mais difícil de entender.
(Depois percebi que qualquer neopronome é "fora da realidade" demais para a maioria das pessoas que usam ele ou ela, não importa o quanto seja uma palavra parecida.)
Mais tarde, soube também da questão de pronomes como elx e el@ não serem pronunciados corretamente por leitores de tela, mas eu não pensei nisso na época.
Enfim, eu me decidi pelo pronome eld (pronunciado mais ou menos como "éldi"), que é fácil de entender como bem diferente de ele/ela, mas que também é similar a estes. Também gostava do pronome elx, então essa virou uma alternativa também.
Mas, ao contrário da língua inglesa, não são majoritariamente pronomes que diferenciam os "gêneros linguísticos" da língua portuguesa.
O final de palavra
Se eu dizia que era pra usar elx pra mim, as pessoas também já consideravam óbvio que todas as palavras com diferenciação de conjunto de linguagem (ou seja, que eram diferentes para quem usava ela e para quem usava ele) usavam x no final. (Administradorx, alunx, atrasadx, etc.)
Mas eld não teria como funcionar desta maneira. O som de el faz com que não seja difícil de colocar uma consoante depois, mas este não é o caso de outras palavras.
Eu também não via a necessidade de usar d como final de palavra. O trabalho do pronome eld é somente de ser uma alternativa a ele, ela, elu ou outros pronomes.
Mas, no início de 2016, eu também não me sentia à vontade usando o final de palavra e para mim, que era ao menos um consenso maior do que qual pronome seria mais apropriado para ser usado como neutro.
E, aliás, eu me questionava também sobre a questão desse e. Por que elx tinha que vir com o final x, mas literalmente qualquer outro pronome além de ele e de ela tinha que usar o final e?
Enfim, naquele momento, eu me sentia mais confortável usando um final de palavra cortado. Eu simbolizava (e simbolizo) aquilo na escrita usando ', como em administrador', alun' e atrasad'.
Assim como um x não pronunciado, algumas palavras ficariam iguais às associadas com o pronome ele (como corredor', administrador' e autor'). Algumas também eram chatas de pronunciar, como d'.
Mesmo assim, era o final de palavra mais confortável pra mim, e usei ele por meses.
Só que agora não dava só pra depender do pronome pra indicar o resto. Eu não queria que qualquer pessoa que decidisse usar eld tivesse que usar ' como final de palavra, especialmente se x e e eram opções bem mais populares e aceitas.
Se na língua inglesa havia mais de um elemento do conjunto, porque só um pronome pessoal não vai ser óbvio (ze/hir/hir/hirs/hirself e ze/zem/zeir/zeirs/zemself são conjuntos diferentes), na língua portuguesa também iríamos precisar de mais do que um elemento.
E se esse elemento novo ficaria no fim das palavras, também faria sentido estar no fim do conjunto: ele/o, elu/e, eld/', elx/x.
O artigo
Eu também fiquei pensando em que outros elementos não são tão fáceis de presumir só com o pronome e com o final de palavra, e cheguei na questão de qual seria meu artigo definido.
Afinal, o final de palavra que eu mais gostava era algo sem pronúncia. E não acho que deveria haver a necessidade de dizerem que sou "' Aster" ao invés de "Aster". Mas haveria como indicar isso?
Quem usa final de palavra a também usa artigo a, e quem usa final de palavra o também usa artigo o (ou pelo menos era assim na época). Como o final de palavra neutro mais popular era e, essas pessoas usariam artigo e? Não seria impossível, e na maior parte das vezes não seria algo difícil de entender, mas será que essas pessoas que descartam uma série de possibilidades por não serem neutras ou fáceis o suficiente concordariam com isso?
Em um livro de latim na biblioteca do meu avô, descobri sobre os pronomes ea, is e id. Acredito que estes tenham dado origem aos pronomes her, his e it, respectivamente.
Isso me inspirou a usar ed como artigo. Afinal, tem suas semelhanças com eld, só tem duas letras, não poderia ser confundido com outra palavra, e faz referência a um pronome neutro antigo.
(Mais tarde, percebi que pessoas só conseguiam ver ed como meu nome ou parte do meu nome, e fui parando de usar este artigo, mas ainda acho ele legal.)
Enfim, eu precisaria encaixar isso no conjunto de alguma forma. Pensei em usar eld/ed/', porque o pronome geralmente vem primeiro. Mas como artigo é algo que vem antes de um nome ou de algo que o substitui, achei que seria mais intuitivo deixar o artigo primeiro: ed/eld/'.
Com os anos, eu fui vendo que realmente não existe muito consenso em qual artigo deve ser usado como neutro. Muita gente usa e, muita gente não usa nenhum, algumas pessoas usam ê, e já vi um trabalho de faculdade onde alguém sugeriu le. Também por este motivo, acho que especificar o artigo pode ser importante.
O uso de conjuntos artigo/pronome/final de palavra
Mesmo que muitas comunidades não tenham aderido a ele, por mais que existam vários guias e exemplos, eu diria que comunidades que usam o sistema acabam sendo positivas para pessoas que nunca se sentiram confortáveis tendo que escolher entre ele, ela, nenhum e/ou elu.
Eu vi alguém usando o pronome ily, e com três opções de final de palavra (acho que eram a, e e y, mas não tenho certeza). Eu vi alguém usando i/ile/e. Eu vi alguém usando -/ély/y. Eu vi gente usando ele com o final de palavra e. Eu vi alguém usando o/ely/o.
Esta diversidade toda só é possível quando a possibilidade é dada, tanto para experimentar, quanto para expressar, quanto para aprender. Eu já passei ali em cima vários links que podem ajudar a compreender melhor como este sistema funciona, se ainda houverem dúvidas.
Atualmente, eu também uso o pronome elz, geralmente descrevendo seu conjunto como ze/elz/e, e o pronome éli, geralmente descrevendo seu conjunto como -/éli/e. Conheço uma pessoa que usa -/elz/e e outra que usa i/éli/i. Estas nuances não conseguiriam coexistir se cada pronome tivesse que vir com artigo e final de palavra determinados.
Se alguém ainda quiser saber mais sobre a necessidade de haverem múltiplas linguagens fora da norma, sugiro que leia Em defesa de uma multiplicidade de pronomes.
Possíveis expansões
Eu entendo que tem uma série de outras coisas que o uso varia de pessoa pra pessoa. Considerando o final de palavra e, eu usaria essie (a terminação -ie é usada quando a terminação -e é usada para quem usa o conjunto o/ele/o), minhe e sue, mas tem gente que usa essu, mi e su (sendo a palavra essu geralmente usada pra quem usa o pronome elu, e mi e su universais pra qualquer pessoa que não usa meu/minha ou seu/sua).
Existe uma proposta de, ao invés de usar final de palavra para pronomes demonstrativos (-/ily/e → essie/estie), usar o próprio pronome pessoal, trocando a letra l por ss/st (-/ily/e → issy/isty). Porém, isso não funciona bem para pronomes como eld, elz e el, e não sei o que pessoas que usam ilu pensam sobre ter pronomes demonstrativos issu e istu.
Uma expansão do sistema artigo/pronome/final de palavra foi sugerida aqui, e uma ferramenta para testar conjuntos para esta expansão está disponível aqui.
Porém, enquanto as pessoas não conseguem nem largar de usar "pronome ela", "pronomes masculinos" ou "elu/delu" mesmo que um monte de material que fale da importância de colocar também o artigo e o final de palavra e que ensine a usar isso seja passado para elas, no máximo acho que poderíamos colocar um elemento a mais, como em ze/eld/essie/e ou -/elx/essx/x.
(Colocar delu/deld/dela/dele/déli/etc. só vai ser útil quando pessoas realmente tiverem pronomes começando com consoantes que não podem ser encaixadas em d[pronome] facilmente. Porém, o único caso que conheci que se encaixa é de uma única pessoa que usou o pronome ty por um tempo, ao mesmo tempo que também usava outros pronomes que começavam com vogal, então não entendo a insistência.)
Por que todo mundo deveria usar o sistema artigo/pronome/final de palavra, e não só quem precisa disso pra expressar sua linguagem?
Porque é só pelo meio da normalização que isso vai ser algo que todas as pessoas vão entender e respeitar.
Se alguém só ver li/ilae/i no perfil de alguém, sem nunca ter visto algo similar, vai achar que é uma referência ou código, não um conjunto de linguagem.
Se alguém estiver acostumade com sues amigues bináries usando o/ele/o e a/ela/a em seus perfis, a pessoa vai ter alguma base para suspeitar que li/ilae/i seja um conjunto de linguagem.
Na anglosfera, eu nunca vi alguém usando she sem também usar her, ou usando he sem usar him, ou usando it sem usar its, ou usando they sem usar them.
Mas falar que você usa um conjunto normalizado como they/them, they/them/their, they/them/themself ou they/them/their/theirs/themself, ao invés de só dizer "they" ou "they pronouns", faz com que as pessoas já se acostumem com a ideia, para que quando alguém avise que usa algo como fae/faer, xe/xem/xyr, kit/kits/kitself ou ne/nem/nir/nirs/nemself, as pessoas ao redor já tenham o padrão na cabeça e tenham menos chances de não entender ou de errar.
É a mesma coisa aqui. Se você acostuma as pessoas com "pronomes masculinos/femininos/neutros", quando alguém fala "artigo ze, pronome elz, final de palavra e", as pessoas acham que aquilo é absurdo, complexo ou confuso demais.
Se você acostuma as pessoas com "elu/delu" e afins, e aparece alguém que usa pronome ele e final de palavra e, lá vem a confusão e as acusações de confundir de propósito e sem necessidade.
E mesmo se você usa elu/e, ainda tem a questão do artigo, que, como falei, é algo que muita gente que usa algo fora de o/ele/o e de a/ela/a tem preferências completamente diferentes entre si.
Tire um pouco do peso das costas de quem só está confortável com linguagens pouco óbvias: ensine as pessoas a sua volta a usarem artigo/pronome/final de palavra.
Mas minha linguagem é qualquer/nenhuma/rotativa, eu não deveria precisar usar este sistema!
Sem problemas! Admito que "qualquer linguagem serve", "não use nenhum conjunto de linguagem específico para se referir a mim" ou "tanto faz a linguagem, desde que fiquem trocando" pode ser mais fácil de explicar assim ao invés de por meio de artigo/pronome/final de palavra.
Mas, se quiser usar este sistema mesmo assim, você pode usar [qlq]/[qlq]/[qlq], -/-/- ou [rtt]/[rtt]/[rtt], respectivamente.
Você também pode querer usar algo como -/íli/[qlq] ou [qlq]/[rtt]/e.
Eu diria que a carga maior deveria estar em cima de quem usa aqueles resumos/eufemismos que falei, e que usam conjuntos de linguagem que mais pessoas conhecem e usariam direito não importando qual o formato que estivessem.
Mas eu não vou mandar um texto longo e pouco explicativo desses pra quem não sabe de nada!
Ok, tente enviar uma ou mais destas páginas. Materiais que são mais focados em explicações práticas não faltam.
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