A relevância de rótulos específicos

Aviso de conteúdo: invalidação de identidades NHINCQ+ "menos comuns"

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Estar fora dos padrões di/cis/heteronormativos sempre traz suas próprias dificuldades, por mais que algumas pessoas passem por mais dificuldades que outras.

Mas algumas pessoas passam por dificuldades específicas por serem "fora da norma demais". Por não conseguirem se encaixar bem em rótulos "consagrados", ou por só se encaixarem neles de forma que não é considerada típica.

Por exemplo, uma mulher trixen sente atração apenas por pessoas não-binárias e por mulheres.

Trixen é um rótulo que vai ser frequentemente questionado e invalidado por ser incomum; mas se tal mulher escolher se dizer lésbica, poderá passar por problemas com sua comunidade ao namorar ume homem não-binárie, ou por problemas com a comunidade não-binária por parecer que está considerando qualquer pessoa que não é um homem binário "basicamente mulher". Por outro lado, ao escolher se dizer bi ou poli e dizer que não sente atração por homens, esta mulher pode ter sua identidade multi invalidada ou questionada, afinal, em uma sociedade exorsexista, só homem e mulher são identidades dignas de serem levadas em consideração quando alguém tem atração por mais de um gênero.

É comum que este tipo de invalidação venha de um lugar de intolerância mesmo: como alguém ousa me trazer uma palavra nova para eu aprender e refletir sobre a existência desta experiência? Como ousa alguém ter uma experiência parecida com a minha, mas usar um rótulo diferente? Como ousa alguém ter uma experiência diferente da minha e usar o mesmo rótulo que eu? Como ousa alguém querer usar o meu rótulo e mais algum, quando eu estou contente só com o meu?

Mas mesmo entre pessoas que ao menos dizem respeitar as mais variadas identidades, não é incomum ver/ouvir comentários como "mesmo se eu tivesse uma experiência tão específica, eu iria continuar usando um termo mais geral".

Eu não vou dizer que este comentário é necessariamente ofensivo ou mentiroso. Existem várias pessoas que escondem as particularidades de sua identidade ao se apresentarem ou explicarem em certos ambientes, que realmente não se interessam em usar termos mais específicos, ou que rejeitam tais rótulos por outros motivos.

Mas, quando esse comentário vem de pessoas que se encaixam perfeitamente tanto na visão de dentro quanto de fora da comunidade sobre o que é ser pan, trans, gênero-fluido, gay, assexual, etc., não consigo deixar de pensar que este tipo de comentário é precipitado.

A invalidação explícita ou implícita nas "definições simplificadas"

Imagine duas pessoas trans.

Uma delas é uma mulher binária hétero. Ela usa a/ela/a, tem uma expressão de gênero feminina, mudou o nome que foi registrada ao nascimento de um nome "de homem" para um nome "de mulher" em seu contexto cultural, e fala publicamente da insegurança que tinha com seu corpo antes de cirurgias e terapia hormonal, mas pessoas que a veem na rua "nunca imaginariam que é uma mulher trans".

Por mais que esta pessoa possa ter sofrido por conta da transmisoginia da sociedade, não há espaços trans que reclamariam que ela "não é trans de verdade", que ela está mentindo sobre ser trans, ou que a forma que ela se identifica causa vergonha para o resto da comunidade trans (em relação a linguagem, expressão de gênero, trajetória, etc).

A outra dessas pessoas é caelgênero-fluxo. Tal pessoa descreve que seu gênero às vezes é vasto e profundo como o espaço, mas às vezes é fraco ou some. É alguém que usa i/íli/i, -/-/- ou le/éli/e, que usa o mesmo nome com o qual foi registradi mesmo que ele seja considerado "de mulher", que não fala de sua disforia física (se é que tem) e que "não se esforça para não parecer mulher".

Não só existe a questão do exorsexismo da sociedade, como também a questão de que, em muitos espaços trans, não é bem aceita a possibilidade de pessoas que não são binárias, que não possuem um gênero fácil de entender por pessoas que "só conhecem mulher e homem", que usam conjuntos de linguagem diferentes de a/ela/a e de o/ele/o, que não seguem a narrativa trans estereotípica de "mudar de sexo" tanto socialmente quanto corporalmente, etc.

A questão aqui não é quem é mais oprimide, e sim quem vai se sentir mais à vontade em se dizer trans e/ou participar de comunidades trans: uma pessoa que segue as narrativas ou uma pessoa que as quebra.

Talvez a pessoa caelgênero-fluxo não tenha chegado em espaços trans se identificando desta forma, mas sim com dúvidas sobre o que fazer por não sentir que era do gênero que lhe foi atribuído ao nascer. Mas, ao se familiarizar com a comunidade, percebeu que várias das experiências de homens trans não se aplicavam a si. E, mais tarde, descobriu que existem pessoas não-binárias e que era uma delas; algo que já lhe rendeu exclusão de certos espaços trans.

Ao explorar espaços não-binários e espaços trans que aceitam pessoas não-binárias, a pessoa pode ter se deparado com ideias como "ninguém realmente tem gênero", "tem que escolher entre ser uma pessoa não-binária socialmente mulher ou socialmente homem", "ser gênero-fluido é às vezes ser mulher e às vezes ser homem" e outras com as quais não se identificava, e eventualmente achou rótulos que lhe definiam melhor do que somente algo tão abrangente quanto não-binárie.

O ponto aqui é que pessoas frequentemente adotam rótulos mais específicos (podendo ou não largar totalmente os mais gerais) por conta de uma ou de ambas estas coisas:

  • Comunidades de rótulos mais comuns ativamente excluem e invalidam pessoas sem certas experiências estereotípicas;

  • Comunidades grandes podem, mesmo de forma não intencional, formar padrões sobre o que significa ser algo, o que faz com que, mesmo que alguém se encaixe na definição de certa identidade, a pessoa possa acabar buscando termos mais específicos por não se encaixar em tais padrões.

Se a pessoa caelgênero-fluxo não quiser se identificar como trans, não-binári ou gênero-fluido, ou se só utiliza tais termos para se descrever quando eles facilitam alguma interação, isso provavelmente vai ser por conta dos espaços mais gerais não considerarem que uma pessoa caelgênero-fluxo possa existir neles, e não por conta de um gosto pessoal.

E quando uma pessoa trans binária diz que não aguentaria usar um rótulo tão incomum, ou quando uma pessoa gênero-fluido homem/mulher diz que gênero-fluido já é um rótulo obscuro o suficiente e que portanto não vê a necessidade de usar algo menos conhecido, até que ponto estas presunções são apenas baseadas em suas próprias experiências como pessoas que possuem vivências estereotípicas para suas identidades?

A adoção de termos forçada por conta de comunidades maiores

Assim como é possível excluir pessoas injustamente, também é possível incluir pessoas de forma ruim.

É sim ideal que comunidades maiores se esforcem ao máximo para incluir explicitamente pessoas que cabem em sua definição sem necessariamente caberem nos estereótipos da comunidade; tanto os que vem de dentro quanto de fora do grupo.

Mas inclusão, no sentido que envolve respeitar pessoas e suas necessidades, também significa não invalidar outros termos que pessoas podem querer usar, ou forçar todas as pessoas com certas experiências a usar certos termos.

Por exemplo: muitas pessoas atualmente não querem usar o termo bi, ou por preconceito contra ele, ou porque possuem associações ruins com ele, ou por acharem melhor usar algum outro termo mais específico.

O que comunidades bi poderiam fazer para resolver este problema é:

  • Espalhar definições inclusivas da identidade bi, que não sejam cissexistas, exorsexistas ou focadas no prefixo bi significar 2;

  • Reconhecer que, mesmo que quaisquer pessoas que sentem atração por múltiplos gêneros possam usar bi, existe uma necessidade de adotar um termo como multi para quando se quer falar de todas as pessoas que sentem atração por múltiplos gêneros, já que muitas dessas pessoas estão cansadas em ter o rótulo bi sendo forçado nelas quando não querem usá-lo;

  • Reforçar que pessoas pan, poli, toren, trixen, penúlti, oni e afins são bem vindas em espaços bi caso queiram participar deles e podem se identificar como bi além destas identidades caso assim desejarem.

Infelizmente, o que vejo acontecendo são/é:

  • Tentativas de especificar a identidade bi para incentivar pessoas a ver outros rótulos como supérfluos/inúteis/problemáticos. Por exemplo, dizer para pessoas pan que bi também é atração independentemente do gênero, e dizer para pessoas heteroflexíveis que pessoas que sentem atração mais por um gênero do que por outro são bi e usar outro rótulo para isso é invalidar pessoas bi que se sentem assim;

  • Insistência em usar bi (ou mesmo bissexual) como termo guarda-chuva para todas as pessoas atraídas por mais de um gênero, desrespeitando pessoas multi que não querem ser chamadas de bi;

  • Descrédito de todas as pessoas que não querem usar o rótulo bi por meio de dizer implicitamente ou explicitamente que são egoístas, ignorantes e/ou problemáticas por não quererem se dizer bi.

Assim, pessoas que veem isso acontecendo também acabam considerando não usar mais o rótulo bi, por não quererem ser associadas com este tipo de comportamento tóxico, o que contribui ainda mais para o "problema" de pessoas não quererem mais se dizer bi.

A comunidade bi é um exemplo disso, mas em comunidades assexuais e não-binárias, entre outras, existem também esses mesmos padrões:

  1. Pessoas que não se sentem contempladas somente ou completamente por termos mais abrangentes passam a se identificar com termos mais específicos (por conta de motivos já citados na outra seção do texto);

  2. Pessoas que se sentem contempladas por termos mais abrangentes se sentem ameaçadas pelo "abandono da comunidade", pela lógica "quanto mais rótulos estranhos menos as pessoas de fora vão levar a comunidade a sério" e/ou por não acreditar que experiências mais específicas realmente existam, façam parte da comunidade e/ou precisem de rótulos mais precisos;

  3. A comunidade se fragmenta, com muitas pessoas deixando de se identificar com termos mais abrangentes por não quererem se associar com a comunidade, enquanto outras pessoas continuam usando o mesmo termo mas param de querer conviver em grupos da identidade, o que torna tais grupos cheios de gente intolerante contra suas respectivas microcomunidades.

Também é importante notar que:

  • Às vezes, pessoas deixam de usar o único rótulo que as contempla em certa categoria pelo comportamento de comunidades que usam aquele rótulo;

  • Muitas vezes, a utilização de um rótulo mais específico (como driagênero) não significa a rejeição de rótulos mais gerais (como agênero, xenogênero, não-binárie ou trans). Especialmente se a comunidade aceita e inclui tais rótulos mais específicos como parte de sua comunidade sem apagamento, invalidação ou deboches;

  • Pessoas que usam rótulos mais específicos já existem. O que comunidades podem fazer é se adaptar a eles ou excluir pessoas. Não há como "criticar rótulos" num vácuo onde termos menos conhecidos são apenas propostas e não identidades utilizadas e queridas por pessoas reais.

Enfim...

Eu sei que este texto provavelmente não vai mudar a cabeça de quem já decidiu que certos rótulos são desnecessários ou ofensivos só porque não são os que tal pessoa usaria. E eu sei que já escrevi outros textos mais ou menos sobre este mesmo assunto, como este.

Mas eu quero que pessoas que querem ser inclusivas, especialmente as que se encaixam nos padrões de algum termo mais conhecido, percebam quando isso acontecer em suas comunidades. E ajudem elas a receber melhor pessoas que não se encaixam nesses padrões.

Outra coisa importante pra isso é espalhar ao máximo possível termos mais abrangentes quando o objetivo do grupo é ser abrangente. Por exemplo, um homem abrorromântico pode se sentir mais à vontade para entrar num grupo aquileano - ou seja, para qualquer homem que é capaz de sentir atração por homens, independentemente desta ser uma atração constante e/ou a única que tais homens têm ou não - do que num grupo para homens "gays e bissexuais", mesmo que a intenção seja a mesma.

E, sim, talvez você tenha que falar o que significa aquileane; ou multi, ou sáfique, ou queer, ou transgênero, ou a-espectral. Faz parte.

Só espero que um dia a maioria dos grupos percebam que diversidade é algo que deixa comunidades mais fortes, e não mais fracas.